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O Rasgão


conto africano do O LIVRO DOS AMORES, de Henri Gougaud 

Quem fez o mundo como ele é? Deus Pai, toda a gente sabe isso. Mas como fez ele o homem e a mulher, e por que é que homem e mulher se amam, e se beijam, e se casam? A alma sabe-o no fundo dos seres, mas é tímida, cala-se. Ouçam então a verdade.

O primeiro ser vivo que Deus fez tinha um corpo e duas caras. Era forte, sensato, e sabia com o coração e os sentidos usufruir do céu e da terra, sabia que a verdadeira luz se contempla com os olhos fechados, sabia o que os mortos sabem, e o que sabem também a criança antes do ventre da mãe. Ele sabia tudo do alto, do baixo. E desejava apenas viver a vida que lhe era dada.

Ora Deus gostava das alegrias do mundo. Num dia de verão, descobriu um vinho de palma maravilhoso. Bebeu, fez estalar a língua, os olhos brilharam-lhe, o nariz pôs-se vermelho, o espírito saiu-lhe do crânio, começou a rir de tudo, a bater palmas, a dançar, em suma a fazer tantos disparates que se enredou nas estrelas e caiu pela escada abaixo. Foi como um raio no meio da tempestade. E onde foi ele cair? Em cima do ser duplo que estava a ver nascer a noite na margem de uma torrente de montanha. A pancada rasgou-o ao meio.


Desde então, o homem e a mulher unem-se, abraçam-se, afastam-se e continuam a procurar-se infinitamente. Sofrem de uma ferida, vivem apenas para curá-la. Fazem amor como quem reza. Têm prazer. Os seus ventres sabem que são apenas um ser em espírito.