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Lua Azul

A lua tem muitas cores. Branca, cinzenta, amarela, negra como o céu, ou vermelha nos filmes. Hoje, nenhuma dessas cores reflecte na sua face. Hoje, um azul-escuro preenche-a, igual aos guaches que usava na escola. É como se alguém, ao molhar o pincel dessa tinta, esborrata-se no céu uma mancha redonda e rugosa.

Da janela da minha casa a irrealidade desenrola-se perante meus olhos. A pouco e pouco mais janelas abrem. Mais cabeças saem. Mais olhos se fixam. Nas ruas travam os carros. Param os passos. Dá-se lugar à fixação do olhar no irreal.

- Mas que puta de merda é esta?

Só podia ser o malcriado do vizinho de cima a cuspir estas palavras. Infelizmente hoje vou concordar com ele.

Afasto-me da janela. Volto os meus sentidos para o silêncio da sala. Ligo a televisão e imagens saltam sem parar. Jornalistas, teólogos, filósofos, políticos lutam por falar. Deixo-me ficar por um comentador científico.

Segundo ele, ainda não tendo certezas do porquê, parece que o fenómeno do aspecto azulado da lua se deve à elevação da água do oceano. Esta, com uma força fenomenal “corre”, por assim dizer, em direcção à lua através de um cilindro, que esta própria forma, de dezenas de Km2. Extraordinariamente, ao passar a atmosfera não sofre alterações de estado, estando a depositar-se na superfície lunar e a formar uma atmosfera idêntica à da terra. Outro factor inexplicável é o facto de esta corrente de água estar a transportar todos os seres marinhos. Até agora nenhum ser humano ou barco entrou no fluxo. Estes ficam, sem explicação, na margem do tudo. Um levantamento sobre as consequências confirma que, por este andar, a terra ficará sem água no prazo de uma semana.

Mais nada foi dito de interesse, apenas um conjunto de avisos e propostas que me incutiram ainda mais ansiedade. Volto à janela. Encosto as mãos no parapeito incomodando-me com a sua frialdade e observo a maré vazar.

- Parece que o raio dos peixes decidiram fugir de nós. Âh vizinho? Fudemos tudo!

Outra vez o chato! Mas ao olhar para a lua, o mais chato é ter novamente que concordar com ele.

Impressões II

Toda a gente se parece com toda a gente. Sinto que isto não é só o meu pensamento estereotipador a actuar, é muito mais que isso. As pessoas estereotipam-se a si mesmas. Facto inegável é a nossa adopção (consciente ou inconsciente) de estilos idênticos aos do grupo com o qual nos identificamos: a fala; o andar; o vestir; entre muitos outros.

Incomoda-me e angustia-me, o facto de, eu não querer estereotipar e não conseguir. Sinto que, por todos quererem ser identificados com algo, e mesmo os que não têm essa intenção inevitavelmente o serem, a minha mente é forçada a estereotipar.

Por isso, ao andar pela cidade de Lisboa olho para todas as pessoas como se apontasse o dedo, classificando-as: pobre; rico; extremamente pobre; novo-rico; classe alta; classe baixa; trabalhador; sem noção; porco; beto; beta; meninos da mamã; convencido; convencida; arrogante; infeliz; cansado; bem-disposto; divertido; “top model”; snob; estrangeiro; indiano; italiano; africano; lisboeta; nortenho; “guna” (chunga); “dondoca”; homossexual; empresário; empresária; “macho men”; empreiteiro; trolha; desconfiado; inteligente; confiante; “hip hoper”; confiante; simpático; humilde; secretária; intelectual; cota; manipulador; passivo; defensivo; tóxico dependente; alcoólico; VIP; azeiteiro; até personagens da televisão (Chuck Norris, Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger, Britney Spears, Angelina Jolie, etc); e mais todos os outros estereótipos imagináveis.

É isto que muitas vezes se passa na minha cabeça, quando caminho pelas ruas, ou quando ando no autocarro ou metro de Lisboa. A dimensão populacional é tão vasta que cria novos grupos e aumenta os grupos já existentes, isto torna impossível ninguém se parecer com ninguém.

Sendo assim, deixo-me influenciar pela dimensão, pela mensagem que as pessoas através do aspecto querem transmitir e pela imagem que muitos não conseguem evitar, logo rotulo. Tento ver para além das evidências, mas não consigo. È como se a imagem barrasse a minha percepção ao ser humano que existe por detrás dela. Mesmo assim, essa é uma característica da qual eu não me esqueço. Que aquele à minha frente é um humano como eu, com os seus dramas, pensamentos, alegrias e tristezas.

Ao chegar a casa dou por mim a identificar-me como um ser humano, por isso penso: E eu? Com quem me pareço?