conto africano do O LIVRO DOS AMORES, de Henri Gougaud
Deus criou o mundo, árvores,
prados e moitas, animais de pelo áspero, pássaros, bichos rastejantes. Depois moldou
um homem e uma mulher, construiu para eles uma cabana num campo junto de um
bosque, e para ela uma palhota à beira de um rio. Eram ambos cegos. Os olhos
deles eram semelhantes aos dos recém-nascidos, a porta das pálpebras estava
ainda fechada. Viveram assim durante uns tempos, sem que nada os empurrasse um
para o outro, e Deus, durante todo esse tempo pôde dormir descansado.
Mas um dia, ao tirarem água cada
um em frente da sua casa, veio-lhes no mesmo instante a mesma sensação
irracional e segura: no fim da vereda que atravessava a direito as ervas estava
uma presença infinitamente preciosa para a vida deles, para os seus sonhos. Deus
ao ver nascer neles o desejo, pensou na sua luz altíssima que um iria em breve ter
com o outro. Queria saber quem, o homem ou a mulher, daria o primeiro passo. E fez
cair sobre o caminho uma chuva de folhas secas. “Quando eu as ouvir estalar,
disse para consigo, hei-de acordar. E hei-de ver quem caminha sobre elas, e portanto
qual dos meus filhos é mais vulnerável é febre amorosa.” Tendo assim pensado,
foi-se deitar no seu leito de nuvens.
A mulher, naquela noite saiu de
casa, e procurando aqui e ali qualquer coisa para comer pôs por acaso a mão em
cima de um sapo barrigudo. O animal cuspiu-lhe o veneno à cara e coaxando
perdidamente desatou aos saltos pelas ervas da margem. A mulher, despeitada,
limpou o rosto. A unha do dedo mindinho arranhou-lhe os olhos. As pálpebras abriram-se.
Ela viu, e maravilhou-se. Acima dela estava o céu, à sua volta a terra, um rio
cintilante, árvores, silvados, mil cores oscilantes, um velho sol poente no
horizonte para oeste, uma casa, acolá, e em frente dos seus pés descalços um
atalho que levava aquele lugar apetitoso. Viu também as folhas secas. Farejou a
armadilha divina. “Se eu for onde quer o fogo que me espicaça, o Velho Pai
sabê-lo-á, disse para consigo a espertalhona. Ora eu prefiro que ele o ignore.”
Sentou-se, pensou na maneira de enganar os ouvidos divinos, depois sorriu,
maliciosa, correu a encher o balde no ribeiro próximo, regou a folhagem seca e
amoleceu-a o suficiente para que não estalasse. Feito isto, prudente e lesta,
dirigiu-se em bicos dos pés para a casa daquele que ela tanto queria conhecer.
Deus mexeu-se no sonho, resmungou e mergulhou em sonhos.
A mulher achou o homem admiravelmente bem feito. Abriu-lhe os olhos
com duas unhadas rápidas. Ela achou a companheira exactamente igual à que
povoava os seus sonhos de cego. Comoveram-se, tocaram-se, tremeram tanto que se
deitaram, encontraram às apalpadelas os caminhos desejados, gozaram,
perguntaram um ao outro como tinham podido sobreviver sem os seus olhares, sem
os seus rostos. Abraçaram-se mais uma vez. Por fim, a mulher disse num suspiro
encantado:
- Vê, o sol levanta-se. Deus não tarda a cair da cama, e eu não
gostaria que ele nos surpreendesse aqui, juntos, um em cima do outro. Homem,
tenho de me ir embora. Amanhã à noite irás ter comigo.
O homem viu a manhã pela primeira vez, viu-a diminuir, viu o sol a
pique secar as folhas mortas e de novo as sombras alongarem-se até anoitecer.
Finalmente, viu a lua a o seu rebanho de estrelas sair dos estábulos celestes. Calçou
então as sandálias e cantarolando suavemente foi ter com o seu amor.
Os pés esmagaram pesadamente a folhagem. Esta estalou e estralejou. Ele
não se preocupou, o seu novo prazer enchia-lhe totalmente o espírito. Ouviu então
um vozeirão por cima da sua cabeça:
- Onde vais, meu filho?
O outro curvou-se, pôs as mãos na cabeça.
- És tu, continuou a voz, quem sucumbe primeiro à febre de amor. Até ao
fim dos tempos, pois que assim seja. Irás ter com a mulher e a mulher esperará
que tu lhe peças para amar.
- Mas, Senhor, arriscou o homem.
Não disse nem mais uma palavra. Estava apaixonado e temia pela amada o
juízo divino. Só ele, desde essa hora em que Deus o interpelou, sabe que é a
mulher quem sempre quer primeiro. É o desejo dela que tudo incendeia. “Olha para
mim”, diz ela, e o homem vai ter com ela, e o Velho Pai, lá em cima, sorri em
sonhos.