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Há coisas que nunca mudam

Há coisas que nunca mudam. Não, não estou a falar dos acontecimentos banais do nosso dia-a-dia, estou a falar de algo mais pessoal, a personalidade. E porquê este dilema? Ora, porque há traços nela que nos fazem agir constantemente da mesma forma errónea perante certos e determinados estímulos. Traição, vicio, ansiedade, impulsividade, raiva, violência, entre outros. Falo disto com um pouco de amargura, porque sinto que nunca deixarei de ser tudo o quede negativo eu sou.

À pouco tempo vi um documentário na televisão sobre um método terapêutico de eliminação de fobias. Tratava-se do caso de uma rapariga que fora violada e que por isso desenvolvera a fobia de sair à rua. Na clínica de psiquiatria decidiram implementar na doente um tratamento experimental. Esse consistia na escrita pormenorizada do acontecimento traumático e na constante audição do relato do acontecimento. Em cada sessão seria medido o grau de ansiedade da doente e antes de cada sessão seria administrado um fármaco. Segundo o médico psiquiatra este fármaco eliminaria as conexões neurais que estabeleciam a ligação entre a ansiedade e a história da violação. Isto só aconteceria se a doente após tomar o medicamento ouvisse e repetisse a história.

Do ponto de vista do médico era o fármaco que fazia efeito, do meu ponto de vista a constante repetição e exposição à história e o efeito “placebo” é que contribuíram para a diminuição da ansiedade. Logo, as conexões que supostamente o fármaco eliminaria ainda continuam lá.

Outra forma de transformação da personalidade, para além dos tratamentos com psicólogos, é a meditação e a oração. Esta baseia-se na repetição constante de uma característica da personalidade positiva. Por exemplo, “sou amável”, ou “sou corajoso”, ou “ sou activo”. De modo a eliminar uma característica negativa a frase meditativa deve ser sempre positiva, nunca do género “não sou arrogante”, “não sou impulsivo”. E qual a explicação neurológica para que este método elimine os traços negativos da nossa personalidade? Precisamente através da desconexão das conexões neuronais.

Hum… Dá que pensar! E eu, claro, fiquei a pensar. Reparem, desde que nascemos essas conexões são formadas e à medida que crescemos mais conexões vão sendo criadas. Essas novas apoiar-se-ão nas anteriores e assim sucessivamente, reforçando-as constantemente. Será assim tão simples eliminar conexões neurológicas que formam a nossa personalidade desde a mais tenra idade? Elas formam a base e os pilares daquilo que somos. Conseguiremos nós deixar de ser quem somos?

A esta pergunta respondo afirmativamente, mas não penso que seja possível através da desconexão neurológica. Isto devido ao que afirmei no parágrafo anterior e também porque sinta que há coisas em mim que nunca hão-de mudar. Sinto que a memória da minha história tem uma influência tão marcante na minha forma de ser, que só com um blackout total no sistema e perdendo a memória de tudo é que deixaria de ser quem sou.

Por isso, há coisas que nunca hão-de mudar. À conexões que não se conseguem desfazer, memórias que não podemos alterar. A única coisa a fazer é acrescentar. O cérebro não desaprende, reaprende. Novas conexões por cima de velhas conexões. São feitos novos caminhos, e é através disso que mudança surge. Os caminhos velhos já não são percorridos, mas sim os novos.

Posto isto, desperta-se em mim outra pergunta. Então, como consegue o cérebro guardar tanta informação? Dou um passo atrás, e volto à mesma lengalenga. Talvez os caminhos antigos, por deixarem de ser pisados, desapareçam com o tempo.

Mesmo assim, acredito que nunca deixaremos de ser quem somos, os caminhos sombrios estarão sempre lá para serem pisados junto com as ruelas claras, a única coisa que muda é a direcção neural que tomaremos.